por Antonio Duran
Turma F-10 da E.L.T.Dramaturgia: Roberto Alvim. Direção: Gustavo Kurlat
A peça musical Nekrópolis, com os formandos-aprendizes da turma F-10 da Escola Livre de Teatro de Santo André, denuncia, de modo contundente, as conseqüências da atitude ausente do Estado para com grande parte da população que vive “à margem” da sociedade. E a contundência está no modo como esse problema é tratado, ao revelar também a contradição existente entre as notícias da realidade, divulgada pelos meios de comunicação, e a realidade de fato, vivenciada pelas pessoas que moram fora das zonas centrais. Ou seja, consegue expor um problema social à luz de outro.
A peça enfoca a trajetória de um grupo organizado que se autodenomina “Estirpe”. Seus membros violam e desenterram cadáveres em decomposição e os expõem em locais estratégicos da cidade (parques públicos, estacionamento de Shopping Center etc). Esses casos atraem a mídia, que por sua vez chama a atenção das autoridades, provocando a captura dos componentes do grupo. Assim, um julgamento se estabelece e coloca em discussão se as ações do grupo devem ser tomadas como delito político ou criminal.
A encenação abre um eficaz diálogo com o texto ao incluir o espectador na posição de júri. Ao iniciar o espetáculo os atores se levantam da platéia e levam consigo as cadeiras para o palco deixando, assim, um espaço livre entre o público, que servirá à representação. Essa operação desestabiliza a ilusão da quarta parede, ao abrir a comunicação dos atores diretamente, e muito próxima, aos espectadores, incluindo-os no julgamento.
O sério trabalho desenvolvido pela E.L.T. fica evidente nessa montagem, em que atores mostram dominar corpo e voz, criando coletivamente, e pensando seu ofício à luz da crítica social. E é justamente esta crítica o ponto mais forte de Nekropolis. Consegue desvelar o funcionamento da realidade social, especificamente, sua lógica espetacular.
Para além de expor a polêmica de que, se o crime de violar e expor cadáveres em praça pública justificaria a atitude de abandono do Estado para com a população mais carente, o grupo Estirpe se utiliza da “fome” pelo espetacular, que a mídia tem, para transformar a exposição dos corpos em decomposição num evento. E assim, poder chamar a atenção das autoridades e da população para a sua própria negligência. Nekropolis oferece um amargo dilema: se o alimento da lógica espetacular é a necessidade da visibilidade, então, para que algum assunto relevante da vida social se torne alvo de discussão, e possível solução, será necessário alimentar a lógica espetacular com seu próprio veneno? E desse modo, fazer com que ela regurgite menos ilusão (espetáculo) e um pouco mais de realidade?
E, se assim for, como não deixar que esses próprios procedimentos se tornem banais? Pois, se a lógica espetacular funciona como uma “droga”, que seda a sensibilidade e faz com que sejam necessárias doses cada vez maiores de choque para poder repercutir, qual será o limite desses eventos extraordinários que sensibilizarão a sociedade para um debate?
Se Nekropolis ousou criar a trama para tratar de um tema relevante, e ao mesmo tempo delicado, pois a denuncia da injustiça social facilmente pode cair num tom agressivo e planfetário, sobra a vontade de avistar maior experimentação na linguagem. Embora haja coerência, tanto na interpretação, como nas coreografias e iluminação, a encenação buscou enfatizar restritamente o caráter austero do tema: com olhares intensos e diretos para os olhos da platéia; gestuais enérgicos e precisos; e iluminação direta, marcadamente frontal nos atores, como se fossem holofotes. Um dos momentos em que o registro sisudo poderia ser dispensado é quando aparecem alguns brinquedos no palco e bonecas sobre as cadeiras, em uma tentativa de simbolizar crianças mortas, mas que serviram mais à ilustração do que a significação. Os objetos apareceram no palco como brinquedos velhos, e não conseguiram estabelecer um diálogo com a vida das crianças que seriam suas donas.
O vigor de Nekropolis vem de sua capacidade de provocar o pensamento em várias direções. O próprio nome traz em si a idéia contraditória de combinar o termo “polis”, que se refere a cidade, que por sua vez seria formada por cidadãos, com o termo “nekro”, que alude a morte. Seria uma cidade formada por cidadãos sem voz, isto é, mortos? Literalmente ou metaforicamente mortos? Fica mais uma questão que Nekropolis consegue tocar. Inclusive na reflexão sobre quais premissas se partir para se fazer uma crítica social.
Um comentário:
Nao sei, mas acho que a peça cai na armadilha da "pedagogia militante" esse tipo de proselitismo ideologico tao pernicioso a arte.
Voces nao acham que tem havido um sociologismo excessivo nas artes no Brasil.?
Espero que eu nao tenha sido chato demais!
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