sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Crítica da peça "O Cantil"


Por Antonio Duran

Grupo: Teatromáquina
Dramaturgia e Direção de Fran Teixeira
Elenco: Aline Silva, Ana Luíza Rios, Edivaldo Batista, Levy Mota e Márcio Medeiros

O grupo cearence Teatromáquina, a partir de um trecho da peça didática de Bertolt Brecht “A exceção e a regra”, expõe em cena sua síntese da obra destacando o caráter opressivo da relação de dominação entre um patrão (comerciante) e seu empregado-carregador (cule) durante a travessia pelo deserto.

O tema da exploração é realçado por meio de atores-manipuladores que conduzem a movimentação e gestos de atores-bonecos. Ou seja, a forma funcionando como demonstração do tema-conteúdo lança uma “lente de aumento” sobre a idéia central da manipulação. E nesse sentido, é fator original a apropriação que se faz da peça de Brecht sem a necessidade de palavras ou de fidelidade ao texto na íntegra.

O cuidadoso e vigoroso trabalho gestual dos atores aliado a trilha sonora e ao figurino consegue contar a história e ao mesmo tempo direcionar a atenção do público para outros aspectos além da fala. Por exemplo: o “diálogo” da trilha com o deslocamento espacial dos atores-bonecos e a marcação precisa de alguns gestos. O contraste entre a postura mais ereta do patrão-comerciante em contraponto com a postura arqueada do empregado-carregador. O cenário limpo, reduzido a elementos essenciais, juntamente com a iluminação monocromática, que cria o ambiente árido do deserto, também facilitam fixar a atenção nessas relações “extra-falas”.

Além de permitir que a atenção do público fique mais vulnerável a esses outros modos de fruir a obra, a concepção cênica consegue provocar uma sensação de estranhamento. Desloca do público o sentimento de identificação com o ator-boneco, que representa o lado mais fraco da relação, para privilegiar a exposição da situação de exploração que se estabelece. Essa operação cria um distanciamento racional que solapa a possível identificação.

Além do gestual dos atores que manipulam e são manipulados, a expressiva aparência do figurino também contribui para esse estranhamento. Com alças colocadas nos antebraços e nuca para facilitar a condução, e com os corpos enfaixados, remetendo aos beduínos do deserto, o figurino dos atores-bonecos suprime a expressão facial, ao mesmo tempo em que são colocados estáticos frente a frente, trocando “olhares” sem rostos.

Nesse jogo experimental entre encenação e público, o tema apresentado não se restringe na relação de quem manipula quem. O espetáculo consegue atualizar um tema caro a Brecht, extraindo como síntese a idéia da exploração da classe dominante sobre a dominada no sistema capitalista, naquilo que ela tem de particular: o processo de desumanização que se estabelece num ambiente de desconfiança. Na cena, esse sentimento é exposto como conseqüência do medo, medo esse identificado por meio de animações projetadas no fundo do palco que revelam os pesadelos do comerciante e do cule. Cada um sonha com as ameaças do outro, na medida em que ambos não conseguem chegar a seu destino e os recursos vão se esgotando. No caso, o bem mais precioso: a água do cantil.

Já que o trabalho, que o Grupo Teatromáquina vem desenvolvendo coletivamente desde 2003, dá mostras de sua força na pesquisa da linguagem teatral, fica a vontade de ver como essas estratégias adotadas, no jogo entre encenação e platéia, poderiam ser levadas ao limite. Até onde se pode chegar ao sentimento de estranhamento? Como levar o exercício formal ao extremo? A troca de olhares entre os atores que manipulavam, entre eles e público, e entre os próprios atores-bonecos resulta num jogo potente, que talvez pudesse ser um caminho de amadurecimento de tais relações-experimentações.

É um espetáculo que salta aos olhos e ouvidos, e quer atualizar, ao seu modo, o tema da relação de poder. E consegue.

Crítica da peça "Café com Queijo"

Atemporal

Por Leca Perrechil

“Eu já teve oito acidente grávido! Eu já teve pnamonia, eu já teve quase cuma, quase cuma malária, só que a malária produzi essa verminose uma varminosi um milhão por minuto e a cesão, não, ela não produzi essa verminosi, é diferente, né! Porque quando ocê tem malária ocê tem certeza absoluta que é malária”.

Imaginem o trecho acima sendo dito por Miguel Falabella em Sai de Baixo, por Denise Fraga em Trair e Coçar é Só Começar ou por Tom Cavalcanti em qualquer show que ele faça. O texto caberia perfeitamente e poderia até, dependendo de como seria dito pelos citados, produzir graça com a exploração do estereótipo regionalista. Porém, a citação inicial faz parte da peça do grupo Lume Café com Queijo, de 1999, e é dita logo no início do espetáculo pelo personagem Mata-Onça (Renato Ferracini) com um registro de interpretação muito diferente de qualquer estereótipo que o texto poderia trazer. Ao contrário, Renato Ferracini traz um Mata-Onça realista e sensível, com ações naturais, tanto nos gestos quanto no registro vocal, dando a sensação do público estar na frente de um senhor muito humilde, de alguma região pobre do Brasil.

Esse é o maior atrativo da montagem que já tem quase 10 anos e foi apresentada recentemente na Caixa Cultural de São Paulo, na mostra Lume de Bolso - o trabalho de corpo e voz dos atores, na recriação de personagens reais, sem puramente imitar nem estereotipar, faz parte da técnica denominada pelo Lume como Mimese Corpórea. Segundo Ferracini em seu livro Café com Queijo: Corpos em Criação, “a mimese corpórea é um processo de trabalho que se baseia na observação, corporificação, codificação e posterior teatralização das ações físicas e vocais observadas no cotidiano. (…) a capacidade do ator de deixar essas ações físicas orgânica geram um corpo-subjétil”.

Para isso, os integrantes do grupo se basearam em senhores e senhoras que encontraram em suas viagens por regiões do país (como Minas Gerais, Amazonas, Goiás etc) durante pesquisa para Contadores de Estórias e Afastem-se Vacas que a Vida É Curta, montagens anteriores do grupo. Para Café com Queijo, o foco maior foi em cima dos personagens idosos, humildes e alguns sozinhos, e todos muito vivos no espaço de encenação - mesmo quando as duas atrizes faziam personagens masculinos e os dois atores, femininos. No final do espetáculo, fotos espalhadas pelo chão das pessoas que inspiraram a peça, comprovavam como os intérpretes conseguiam retratar gestos e expressões faciais dos originais, inclusive tristezas expressas tanto na imagem quanto nas legendas das fotos, com frases ditas por eles.

Outra característica bastante presente na peça é a musicalidade acompanhada de interação com a platéia. Os atores tocam e cantam durante o espetáculo, algumas vezes animando a galera - não porque cantam os hits preferidos do povo de teatro, mas depois de um longo período de monólogos intercalados pelos atores - alguns com diálogos entre esses personagens outros não - um descanso musical cai bem. Em alguns momentos, eles aproveitam pra convidar pessoas da platéia para completarem a letra com nomes de santos e pra irem pro meio da arena falarem um poema. O pessoal que participou dessa última categoria de interação era tão ensaiadinho e estavam com o texto tão na ponta da língua, que cheguei a pensar que eram todos atores amigos do grupo (até porque alguns abraçaram os atores no final). Mas conversando com uma amiga que foi no dia anterior, soube que ela passou apuros porque a peça não continuava enquanto ela não falava seu poema. Apesar do mico, poderia ter sido pior. Ela poderia estar no Teatro Oficina e a peça não recomeçar enquanto ela não tirasse a roupa… acontece.

E pra completar esse trabalho coletivo, nada melhor do que uma aguardente forte pra diabo bebida no gargalo durante a peça e, é claro, o café com queijo depois da encenação. A bebida típica foi servida para os atores durante a pesquisa por seu Justino e Dona Angélica no interior do Tocantins e virou o nome de peça. Pra quem não sabe, o queijo vai dentro do café, fica derretidinho e até gostoso… na medida do possível.