sexta-feira, 22 de maio de 2009

Nekrópolis

     Por Beta Nunes

  “A obra de arte é sempre comovente e desagradável, ao mesmo tempo”. Partindo desse pressuposto, pode-se considerar o espetáculo “Nekrópolis”, com texto de Roberto Alvim e direção de Gustavo Kurlat, uma obra de arte. Por quê?

Porque ao tratar da realidade do país de forma tão próxima dos fatos, ao colocar a lente tão perto do nosso dia-a-dia, a peça, apresentada por jovens formandos da Escola Livre de Santo André, mostra-nos uma imagem que, apesar de verdadeira, caracteriza-se por ser desagradável, feia e grotesca. É desagradável ouvir desses jovens - que deveriam estar sonhando -, que o projeto democrático do país faliu, que o mundo desejado por nós resultou em violência, miséria, medo. É feio ver em imagens tanto técnica quanto esteticamente bem elaboradas, compostas por meninos e meninas em idade de estar dançando e celebrando a vida, que nossas crianças estão sendo cotidianamente adormecidas, nossos adolescentes sistematicamente assassinados e nossos velhos peremptoriamente entristecidos. É grotesco perceber que estamos desorientados, perdemos a identidade e não aprendemos com a História. E tudo isso dito por aqueles que deveriam estar vivendo num mundo melhor, criado pelos mais velhos, para eles. Não temos futuro – parece-nos afirmar “Nekropólis” –, pois aniquilamos o presente e ignoramos o passado.


Apesar da pretensão de se estabelecer uma estética contemporânea, que tem como cracterísticas principais a desconfiguração das estruturas dramáticas e a desconstrução do discurso, a forma escolhida para nos mostrar tanta desolação é bastante simples. Um musical intermediado pelo julgamento de supostos terroristas garante uma apresentação linear, com curvas de tensão, quebrada pelas músicas compostas pelos atores. Tais peças musicais, muito bem executas, são, porém, longas demais, prejudicando um pouco o ritmo do espetáculo. Mesmo a inclusão de uma linguagem estranha, como se fosse um idioma de seres de outro planeta, a qual no início chega a desnortear o público, é facilmente decodificada depois de um tempo, o que acaba por amenizar o impacto pretendido.


O espetáculo é feito por jovens, e isso fica claro em vários aspectos: na voz que às vezes vacila, na criação de cenas ilustrativas do texto, na energia que utilizam para mostrar o quanto são contestadores, no texto que retrata uma realidade cruel, mas que, no fundo, possui um certo tom de ingenuidade e frescor.


A imaturidade revelada no espetáculo “Nekropólis” não o desvaloriza em nada; muito pelo contrário, é o que emociona. É comovente ver o esforço desses jovens em ter uma postura política assumida. É alentador vê-los chafurdar na História e colocar de forma estética os seus pontos de vistas. É belo ver que temos uma geração a qual, apesar de tudo, ainda acredita.

Nekrópolis

por Antonio Duran

 Turma F-10 da E.L.T.Dramaturgia: Roberto Alvim. Direção: Gustavo Kurlat

A peça musical Nekrópolis, com os formandos-aprendizes da turma F-10 da Escola Livre de Teatro de Santo André, denuncia, de modo contundente, as conseqüências da atitude ausente do Estado para com grande parte da população que vive “à margem” da sociedade. E a contundência está no modo como esse problema é tratado, ao revelar também a contradição existente entre as notícias da realidade, divulgada pelos meios de comunicação, e a realidade de fato, vivenciada pelas pessoas que moram fora das zonas centrais. Ou seja, consegue expor um problema social à luz de outro.

A peça enfoca a trajetória de um grupo organizado que se autodenomina “Estirpe”. Seus membros violam e desenterram cadáveres em decomposição e os expõem em locais estratégicos da cidade (parques públicos, estacionamento de Shopping Center etc). Esses casos atraem a mídia, que por sua vez chama a atenção das autoridades, provocando a captura dos componentes do grupo. Assim, um julgamento se estabelece e coloca em discussão se as ações do grupo devem ser tomadas como delito político ou criminal. 

A encenação abre um eficaz diálogo com o texto ao incluir o espectador na posição de júri. Ao iniciar o espetáculo os atores se levantam da platéia e levam consigo as cadeiras para o palco deixando, assim, um espaço livre entre o público, que servirá à representação. Essa operação desestabiliza a ilusão da quarta parede, ao abrir a comunicação dos atores diretamente, e muito próxima, aos espectadores, incluindo-os no julgamento.

O sério trabalho desenvolvido pela E.L.T. fica evidente nessa montagem, em que atores mostram dominar corpo e voz, criando coletivamente, e pensando seu ofício à luz da crítica social. E é justamente esta crítica o ponto mais forte de Nekropolis. Consegue desvelar o funcionamento da realidade social, especificamente, sua lógica espetacular.

Para além de expor a polêmica de que, se o crime de violar e expor cadáveres em praça pública justificaria a atitude de abandono do Estado para com a população mais carente, o grupo Estirpe se utiliza da “fome” pelo espetacular, que a mídia tem, para transformar a exposição dos corpos em decomposição num evento. E assim, poder chamar a atenção das autoridades e da população para a sua própria negligência. Nekropolis oferece um amargo dilema: se o alimento da lógica espetacular é a necessidade da visibilidade, então, para que algum assunto relevante da vida social se torne alvo de discussão, e possível solução, será necessário alimentar a lógica espetacular com seu próprio veneno? E desse modo, fazer com que ela regurgite menos ilusão (espetáculo) e um pouco mais de realidade?

E, se assim for, como não deixar que esses próprios procedimentos se tornem banais? Pois, se a lógica espetacular funciona como uma “droga”, que seda a sensibilidade e faz com que sejam necessárias doses cada vez maiores de choque para poder repercutir, qual será o limite desses eventos extraordinários que sensibilizarão a sociedade para um debate?

Se Nekropolis ousou criar a trama para tratar de um tema relevante, e ao mesmo tempo delicado, pois a denuncia da injustiça social facilmente pode cair num tom agressivo e planfetário, sobra a vontade de avistar maior experimentação na linguagem. Embora haja coerência, tanto na interpretação, como nas coreografias e iluminação, a encenação buscou enfatizar restritamente o caráter austero do tema: com olhares intensos e diretos para os olhos da platéia; gestuais enérgicos e precisos; e iluminação direta, marcadamente frontal nos atores, como se fossem holofotes. Um dos momentos em que o registro sisudo poderia ser dispensado é quando aparecem alguns brinquedos no palco e bonecas sobre as cadeiras, em uma tentativa de simbolizar crianças mortas, mas que serviram mais à ilustração do que a significação. Os objetos apareceram no palco como brinquedos velhos, e não conseguiram estabelecer um diálogo com a vida das crianças que seriam suas donas.

O vigor de Nekropolis vem de sua capacidade de provocar o pensamento em várias direções. O próprio nome traz em si a idéia contraditória de combinar o termo “polis”, que se refere a cidade, que por sua vez seria formada por cidadãos, com o termo “nekro”, que alude a morte. Seria uma cidade formada por cidadãos sem voz, isto é, mortos? Literalmente ou metaforicamente mortos?  Fica mais uma questão que Nekropolis consegue tocar. Inclusive na reflexão sobre quais premissas se partir para se fazer uma crítica social.

Nekrópolis

por Rogério Guarapiran 

Necrópole é a antiga cidade dos mortos, campos de sepulturas que fundaram os grandes centros de civilização da antiguidade. O afastamento histórico do convívio mais orgânico com nossos mortos enfraqueceu a consciência de memória cultural remota e nossa capacidade de resistir prontamente ao julgo arbitrário e autoritário de formações cristalizadas.

O eixo central da criação colaborativa entre aprendizes e mestres da F10 da ELT com a peça “Nekrópolis” toma como centro das discussões um possível “ato extremado”, de intervenção política, como busca estética de contestação aos poderes estabelecidos. Trabalho musical de ficção crítica que coloca em processo a reflexão sobre as contradições sócio-políticas da história do Brasil recente e pratica a exumação de algumas mazelas de nossos vínculos imediatos de solidariedade e justiça social.

No início há uma dificuldade de compreender qual língua está sendo falada, não se entende a lógica do discurso e algumas palavras se destacam cruamente. Essa desorientação é um gesto - no primeiro momento incompreensível - para estabelecer o jogo de códigos e atitudes de um grupo terrorista denominado “estirpe”, que dá seu manifesto propositadamente confuso. No segundo momento inicia-se um julgamento - novo gesto que agora funda o fio da narrativa - que se desenrolará por toda a peça, entrecortado por músicas e flashs de cenas que contextualizam o processo. Nessa dinâmica o público é colocado como júri , integra a relação e é constantemente intimidado e solicitado a refletir meio ao embate ideológico dirigido pelos advogados de acusação e defesa. As músicas têm função de interrupções do fluxo dramático: comentam, antecipam, contradizem e pontuam momentos críticos; são encenadas com uma coreografia que tenta formalizar essa multifunção. A descontinuidade da narrativa exige uma versatilidade na configuração espacial, e para tanto utiliza-se palco e platéia com recursos econômicos de cenário: quase tudo são cadeiras que compõe o espaço. Os blackouts também contribuem para os cortes e mudanças de planos.

A montagem compreende várias camadas dramatúrgicas: o texto, enredo (destino do grupo terrorista dentro do julgamento),  música, coreografia, etc; revelam conflitos latentes de correspondências entre as atitudes e intenções  de cada elemento. A esquemática dominante da instauração do julgamento traz uma série de limitações formais em contradição com o primeiro gesto de desatinar a linguagem, porque o tribunal comporta-se num jogo antagônico e elementar de juiz, júri e opinião pública que aparecem de forma idealizadas. A atriz-juiz se dirige ao público-júri numa mistura de inquérito, averiguação e argüição, em uma tentativa de síntese investigativa que sufoca as tentativas mais intempestivas de construções na fala. As propostas de embate ideológico direto entre pares antagônicos dos advogados, representantes do poder legal e os terroristas abrem um campo muito fecundo para o debate de idéias, embora não consiga avançar para uma discussão mais aprofundada.

A direção musical atinge o adensamento de uma expressão de contestação que as letras compostas pelos atores reclamam, conseguindo uníssono muito claro das vozes em coro. Porém, essa harmonização e as melodias encontram um limite contraditório desfavorável em relação à linguagem truncada e desarticulada que pretendia atender aos terroristas. Os motivos melódicos, facilmente assimiláveis em termos de encadeamento da idéia musical, não correspondem à tentativa de desarticular a lógica do discurso que inicialmente foi sugerido. A coreografia, ao tentar desarticular os gestos, provoca uma sensação de caos organizado, e assim é mais coerente com a intenção estética. Mas há momentos em que não é difícil reconhecer algumas movimentações mal acomodadas e o abarrotamento de expressões para compensar um encaixe forçado das músicas com os cortes da narrativa central do tribunal.

Atuação é o foco de um trabalho de formação de atores de uma escola e na ELT a integração do ator em todas as etapas e áreas da criação teatral ressalta uma atitude muito consciente sobre temas que tendem a deslocar a atenção mais para fora do que para dentro do palco. Em “Nekrópolis” a autonomia está em relação oportuna e conflituosa com a forma de trabalho coletivo que resultou em fundar a autonomia de elementos cênicos que se manifestam estanques e amarrados por um truque de força que é o tribunal instaurado.

Nekrópolis

Por Elaine Frere

A história da Escola Livre de Teatro é de montagens com temas densos, fato que, talvez, esteja ligado ao histórico dos idealizadores da escola: profissionais atuantes, competentes e habituados às lutas políticas da classe artística.

Já a Cidade de Santo André é um lugar com vistas para a cultura, intelectualizada e com seus excêntricos artistas a transitarem por toda parte em seus diferentes tipos e personalidades. 

Com tanto “engajamento e liberdade”, pois que o nome já anuncia: “Escola Livre”, não é raro que as montagens tragam questões do coletivo para a cena, que façam criticas sociais e que optem por chocar a platéia.

Nekrópolis leva ao palco acontecimentos monstruosos e cotidianos, velhos conhecidos de todos nós, desastres da personalidade humana. Na trama, uma suposta facção criminosa chama a atenção para os crimes sociais, cometendo outros, tão ou mais chocantes. Logo, todo o teatro se transforma num tribunal, do qual o público faz parte, obrigatoriamente, e passa a participar de um julgamento que deve considerar, se o grupo agiu movido politicamente ou se foram crimes comuns. Neste âmbito muitas questões e reflexões sócio culturais são abordadas, como, por exemplo, a violência dos jogos eletrônicos, oferecidos aos filhos por seus próprios pais que, contraditoriamente, se perguntam por que seus filhos teriam se tornado tão violentos.

Diante do labirinto que Nekrópolis apresenta, bem se coloca a insistente pergunta de Gilberto Gil na canção Domingo no Parque, que narra um crime passional cuja condenação é certa:

- E agora, José?

- E agora, José?

- E agora, José?

Se a condenação é certa, um fato consumado, de que vale falar dela?

A citação também serve de  paródia às palavras quebradas e repetidas do texto (possível ensaio do absurdo que se perde rapidamente), aos black outs freqüentes, ao movimento corporal repetitivo da dança contemporânea em cena, ou mesmo a sensação de “dèjá vú” do tema, que está na TV, nos jornais, na rádio, nas ruas e no Teatro.

Parecendo querer reafirmar o tom sombrio da trama, como se houvesse essa necessidade, os figurinos são na cor cinza, o palco é neutro, e a luz é, quase sempre, branca. Neste contexto, a cena da  mulher que ao ser baleada na cabeça sofre delírios para, então, morrer, trabalhada como um rito de passagem, é quase um oásis poético e imagético, em meio ao tom cinzento da peça. Um oásis que se esvazia, no esforço final de uma morte naturalista em cena.

Fica a certeza de que há, por traz desses aprendizes, uma preocupação da escola, em formar profissionais pensantes, conscientes e preocupados com a função social da Arte, embora a obra, ora analisada, pareça um pouco ultrapassada quanto ao que se propõe a denunciar, posto que nenhuma novidade se apresenta, nem quanto ao tema, nem quanto a forma. Mas é certo que há, no espaço da Escola Livre, um prenúncio e o exercício das várias técnicas e recursos necessários ao “bom fazer teatral”.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Crítica da peça "Será que a gente influencia o Caetano?"

Por Elaine Frere

Vale a reflexão!

Não esta que o título sugere, mas aquela que o texto propõe sobre o quanto do que consideramos realizações pessoais, vai realmente ao encontro do nosso sonho de realização; o quanto do que pensamos escandalizar, realmente foi escandalizado conforme planejamos; o quanto do que nos propusemos a mudar, foi realmente mudado conforme nossa pretensão.

O texto de Mário Bortolotto de início parece caminhar pelo já conhecido e amplamente discutido universo das preocupações, ansiedades e banalidades juvenis. Amparado no caminho certeiro da comédia, se revela uma inteligente construção dramatúrgica, que conduz a um engraçado e surpreendente desfecho para as personagens. Surpreendente porque nos leva a constatar o óbvio, talvez nunca antes refletido: “Ser ou não ser, eis a questão!”

Os sonhos que tivemos se tornaram realidade, tal qual foram sonhados, ou foram simplesmente moldados e transformados em realizações possíveis diante da vida, nos deixando acreditar que tudo saiu conforme planejamos?

Assim se apresentam os inseparáveis amigos Mário Jr. e Beto Virgem, personagens da trama. Mário Jr. sonha ser músico e termina vendedor de loja de instrumento musical, julgando ter realizado com isso o seu sonho juvenil. Já Beto Virgem sonha ser poeta e jornalista “cabeça” e termina escrevendo fofocas para o Jornal Metrô News, emprego que considera importante e realizador de suas aspirações.

O texto de Bortolotto tem 23 anos, é atualíssimo e revelador de uma trajetória que se aplica possivelmente a toda uma geração, mesmo que não nos demos conta disso. Isso pode ser constatado pelo efeito do espetáculo, embora quem assista à peça e esteja na faixa etária dos personagens vá provavelmente se divertir, sem, no entanto, se enxergar ali. Talvez isso aconteça daqui a vinte e três anos.

Então, o texto de Mário Bortolotto reflete não o modo de pensar e de agir de uma geração, como parece no princípio. É, por assim dizer, um retrato do modo de pensar e de agir de um povo, ao longo do tempo. Nem por isso é emblemático, sério ou provoca reflexões imediatas. Ao contrário, é leve, divertido e provoca reflexões a longo prazo... Impagáveis reflexões! Até mesmo esta: Será que a gente influencia o Caetano? Enquanto sociedade, enquanto país, enquanto ser humano... Quanto da trajetória desses monstros sagrados das Artes se completou da forma como idealizaram, uma vez que o próprio Caetano, hoje, canta ao lado de Roberto Carlos, representante mais direto de formas de pensar e produzir, absolutamente adversas, no passado?

Vale aqui contar uma breve história cujo desfecho vai ao encontro do tema da peça: Uma amiga me confidenciou, esta semana, ter ido a um guru. Em sua consulta ela afirma ter dito que fora uma “ovelha negra” da família, bem ao estilo Rita Lee, pois sua mãe a ensinara a ser dona de casa, costurar e prestar trabalho voluntário com crianças, e ela, uma revolucionária, se tornara uma artista. Questionada sobre quais suas atribuições na condição de artista ela respondeu o seguinte: “hoje passo a maior parte do tempo trabalhando em casa, faço a produção dos meus trabalhos, costuro meus figurinos, e atuo junto à infância, faço festas infantis”... Ao que o guru respondeu prontamente: Ok, exatamente como sua mãe planejara, dona de casa, costureira e trabalha com crianças!

E Rita Lee? Tornou-se mãe, construiu uma família nos moldes tradicionais e hoje canta ao lado de Roberto Carlos, também!.

O que diria Freud sobre isso? Não sei, não entendo Freud! Nunca entendi!

E agora, você, leitor deve estar se perguntando: Como alguém se propõe a escrever sobre a existência humana sem entender Freud?

Eu te respondo: fui influenciada pelo Caetano, digo, pela jovialidade dos personagens da peça do Mário Bortolotto, mas a verdade é que não sei o quanto do que realizo vai ao encontro ao meu sonho de realização em toda a sua amplitude, e talvez eu faça parte dessa maioria representada no texto do Mário Bortolotto. Sinceramente, espero que daqui há uns 23 anos eu descubra que não!

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Crítica da peça "O Cantil"


Por Antonio Duran

Grupo: Teatromáquina
Dramaturgia e Direção de Fran Teixeira
Elenco: Aline Silva, Ana Luíza Rios, Edivaldo Batista, Levy Mota e Márcio Medeiros

O grupo cearence Teatromáquina, a partir de um trecho da peça didática de Bertolt Brecht “A exceção e a regra”, expõe em cena sua síntese da obra destacando o caráter opressivo da relação de dominação entre um patrão (comerciante) e seu empregado-carregador (cule) durante a travessia pelo deserto.

O tema da exploração é realçado por meio de atores-manipuladores que conduzem a movimentação e gestos de atores-bonecos. Ou seja, a forma funcionando como demonstração do tema-conteúdo lança uma “lente de aumento” sobre a idéia central da manipulação. E nesse sentido, é fator original a apropriação que se faz da peça de Brecht sem a necessidade de palavras ou de fidelidade ao texto na íntegra.

O cuidadoso e vigoroso trabalho gestual dos atores aliado a trilha sonora e ao figurino consegue contar a história e ao mesmo tempo direcionar a atenção do público para outros aspectos além da fala. Por exemplo: o “diálogo” da trilha com o deslocamento espacial dos atores-bonecos e a marcação precisa de alguns gestos. O contraste entre a postura mais ereta do patrão-comerciante em contraponto com a postura arqueada do empregado-carregador. O cenário limpo, reduzido a elementos essenciais, juntamente com a iluminação monocromática, que cria o ambiente árido do deserto, também facilitam fixar a atenção nessas relações “extra-falas”.

Além de permitir que a atenção do público fique mais vulnerável a esses outros modos de fruir a obra, a concepção cênica consegue provocar uma sensação de estranhamento. Desloca do público o sentimento de identificação com o ator-boneco, que representa o lado mais fraco da relação, para privilegiar a exposição da situação de exploração que se estabelece. Essa operação cria um distanciamento racional que solapa a possível identificação.

Além do gestual dos atores que manipulam e são manipulados, a expressiva aparência do figurino também contribui para esse estranhamento. Com alças colocadas nos antebraços e nuca para facilitar a condução, e com os corpos enfaixados, remetendo aos beduínos do deserto, o figurino dos atores-bonecos suprime a expressão facial, ao mesmo tempo em que são colocados estáticos frente a frente, trocando “olhares” sem rostos.

Nesse jogo experimental entre encenação e público, o tema apresentado não se restringe na relação de quem manipula quem. O espetáculo consegue atualizar um tema caro a Brecht, extraindo como síntese a idéia da exploração da classe dominante sobre a dominada no sistema capitalista, naquilo que ela tem de particular: o processo de desumanização que se estabelece num ambiente de desconfiança. Na cena, esse sentimento é exposto como conseqüência do medo, medo esse identificado por meio de animações projetadas no fundo do palco que revelam os pesadelos do comerciante e do cule. Cada um sonha com as ameaças do outro, na medida em que ambos não conseguem chegar a seu destino e os recursos vão se esgotando. No caso, o bem mais precioso: a água do cantil.

Já que o trabalho, que o Grupo Teatromáquina vem desenvolvendo coletivamente desde 2003, dá mostras de sua força na pesquisa da linguagem teatral, fica a vontade de ver como essas estratégias adotadas, no jogo entre encenação e platéia, poderiam ser levadas ao limite. Até onde se pode chegar ao sentimento de estranhamento? Como levar o exercício formal ao extremo? A troca de olhares entre os atores que manipulavam, entre eles e público, e entre os próprios atores-bonecos resulta num jogo potente, que talvez pudesse ser um caminho de amadurecimento de tais relações-experimentações.

É um espetáculo que salta aos olhos e ouvidos, e quer atualizar, ao seu modo, o tema da relação de poder. E consegue.

Crítica da peça "Café com Queijo"

Atemporal

Por Leca Perrechil

“Eu já teve oito acidente grávido! Eu já teve pnamonia, eu já teve quase cuma, quase cuma malária, só que a malária produzi essa verminose uma varminosi um milhão por minuto e a cesão, não, ela não produzi essa verminosi, é diferente, né! Porque quando ocê tem malária ocê tem certeza absoluta que é malária”.

Imaginem o trecho acima sendo dito por Miguel Falabella em Sai de Baixo, por Denise Fraga em Trair e Coçar é Só Começar ou por Tom Cavalcanti em qualquer show que ele faça. O texto caberia perfeitamente e poderia até, dependendo de como seria dito pelos citados, produzir graça com a exploração do estereótipo regionalista. Porém, a citação inicial faz parte da peça do grupo Lume Café com Queijo, de 1999, e é dita logo no início do espetáculo pelo personagem Mata-Onça (Renato Ferracini) com um registro de interpretação muito diferente de qualquer estereótipo que o texto poderia trazer. Ao contrário, Renato Ferracini traz um Mata-Onça realista e sensível, com ações naturais, tanto nos gestos quanto no registro vocal, dando a sensação do público estar na frente de um senhor muito humilde, de alguma região pobre do Brasil.

Esse é o maior atrativo da montagem que já tem quase 10 anos e foi apresentada recentemente na Caixa Cultural de São Paulo, na mostra Lume de Bolso - o trabalho de corpo e voz dos atores, na recriação de personagens reais, sem puramente imitar nem estereotipar, faz parte da técnica denominada pelo Lume como Mimese Corpórea. Segundo Ferracini em seu livro Café com Queijo: Corpos em Criação, “a mimese corpórea é um processo de trabalho que se baseia na observação, corporificação, codificação e posterior teatralização das ações físicas e vocais observadas no cotidiano. (…) a capacidade do ator de deixar essas ações físicas orgânica geram um corpo-subjétil”.

Para isso, os integrantes do grupo se basearam em senhores e senhoras que encontraram em suas viagens por regiões do país (como Minas Gerais, Amazonas, Goiás etc) durante pesquisa para Contadores de Estórias e Afastem-se Vacas que a Vida É Curta, montagens anteriores do grupo. Para Café com Queijo, o foco maior foi em cima dos personagens idosos, humildes e alguns sozinhos, e todos muito vivos no espaço de encenação - mesmo quando as duas atrizes faziam personagens masculinos e os dois atores, femininos. No final do espetáculo, fotos espalhadas pelo chão das pessoas que inspiraram a peça, comprovavam como os intérpretes conseguiam retratar gestos e expressões faciais dos originais, inclusive tristezas expressas tanto na imagem quanto nas legendas das fotos, com frases ditas por eles.

Outra característica bastante presente na peça é a musicalidade acompanhada de interação com a platéia. Os atores tocam e cantam durante o espetáculo, algumas vezes animando a galera - não porque cantam os hits preferidos do povo de teatro, mas depois de um longo período de monólogos intercalados pelos atores - alguns com diálogos entre esses personagens outros não - um descanso musical cai bem. Em alguns momentos, eles aproveitam pra convidar pessoas da platéia para completarem a letra com nomes de santos e pra irem pro meio da arena falarem um poema. O pessoal que participou dessa última categoria de interação era tão ensaiadinho e estavam com o texto tão na ponta da língua, que cheguei a pensar que eram todos atores amigos do grupo (até porque alguns abraçaram os atores no final). Mas conversando com uma amiga que foi no dia anterior, soube que ela passou apuros porque a peça não continuava enquanto ela não falava seu poema. Apesar do mico, poderia ter sido pior. Ela poderia estar no Teatro Oficina e a peça não recomeçar enquanto ela não tirasse a roupa… acontece.

E pra completar esse trabalho coletivo, nada melhor do que uma aguardente forte pra diabo bebida no gargalo durante a peça e, é claro, o café com queijo depois da encenação. A bebida típica foi servida para os atores durante a pesquisa por seu Justino e Dona Angélica no interior do Tocantins e virou o nome de peça. Pra quem não sabe, o queijo vai dentro do café, fica derretidinho e até gostoso… na medida do possível.